
Sabem como é, aquela coisa de histórias em família.
Só que no caso do Paulo, já não era mais só história: havia tomado o statusde lenda. E, como de praxe nestes casos, ganhava proporções maiores a cada atualização ou novo relato.
Tudo corria dentro da normalidade, até que o Pedrinho, filho do Paulo,começou a crescer.
E a se interessar pelas histórias sobre o pai.
- Teu pai jogava muito, guri...
- Muito?
- Muito!
- Em qual posição ele jogava?
- Camisa 10, meia-atacante!
- Nossa...
Na escola, durante o recreio, resolveu passar adiante uma das histórias queo tio lhe contara. Encostou no Sardinha, seu colega de sala e doente por futebol:
- Ô, Sardinha, sabia que meu pai foi meia-atacante?
- E ele era bom?
- Muito! Camisa 10. Artilheiro...
- É? E em qual time ele jogou?
- Não sei!
- Como não sabe?
Não sabia. Esquecera de perguntar este detalhe para o tio.Decidiu descobrir direto na fonte.
- Paiê, em qual time tu jogavas?
- Vários times, filho! – respondeu enquanto largava o jornal
- Algum time bom?
- Claro, filho! Joguei no São Paulo, no Inter, e...
- No São Paulo?! No Inter?!
- Er... não, filho... no São Paulo de Rio Grande e no Inter de Santa Maria,que são times muito tradicionais e importantes do futebol gaúcho...
- Ah... mas ganhou algum campeonato?
- Alguns, filho... sendo que os mais importantes foram os dois títulos consecutivos do interior...
- Como assim, título do interior? Que campeonato é esse?
- Na verdade é como chamavam na época quem chegava logo atrás de Grêmio e Inter ao final do Campeonato Gaúcho...
- Ah, entendi...
- Entendeu, filhão?
- Entendi. Os teus maiores títulos foram dois terceiros lugares no Gauchão.
- (...)
- Pai?
Nessa hora, o Paulo, que apesar de paciente também tinha limites, estavalouco pra enfiar a mão no guri. Mas teve calma e prosseguiu.
- Eram outros tempos... tu nem eras nascido ainda, e... anh... bem...
Nessa hora a melhor coisa a se fazer é, claro, mudar de assunto. Mas não foi, mais claro ainda, o que o Paulo fez.
- ...eu também fui artilheiro do Carioca em 82, quando o Flamengo comprou o meu passe.
- Flamengo? Verdade, pai?
- Aham...
Afinal, se é pra mentir, que se minta bem!
- Oba! Vou contar isso pro Sardinha.
- Vai lá...
- Demais! Ele é fã de futebol e herdou um montão de revistas do pai dele.Com certeza tem o teu nome lá, em alguma delas...
Foi aí que o Paulo percebeu a bobagem que fizera. Seria desmascarado.Brutalmente desmascarado.Haveria de carregar aquele opróbrio como um pesadíssimo fardo, às costas,até o derradeiro dia de sua passagem por este plano. Precisava consertaraquilo, e ligeiro.
- Ei, filho, espera... tu precisas mesmo contar isso pro teu colega?
- Claro, pai... me orgulho de ti... mas... é verdade isso mesmo, né?
- Claro, claro... só avisa ao Tainha...
- Sardinha, pai.
- Isso. Diga ao Sardinha pra procurar o artilheiro daquele campeonato pelo meu apelido da época. Pelo meu nome ele não vai achar.
- Apelido?
- Isso, filhão! – suando muito, mas muito frio
- Tá, e qual é o apelido, pai? Espero que não seja complicado... eu ainda não conheço quase nada de futebol, sabe...
- Zico!
A mãe do Pedrinho, indignada, teve que trocar o filho de escola. Nosso meia-atacante camisa 10 dormiu no sofá por 5 semanas consecutivas e a criança, passados 10 anos – hoje com 18 – ainda não voltou a falar com o pai sem ser por monossílabos.Ah, sim, o tio do Paulinho é considerado persona non grata na casa.
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Foto: Cards Ping-Pong
1 comentários:
Muito boa história!
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