É pênalti!

De: Maurício Kehrwald

A manhã estava ensolarada e tranqüila naquele domingo. Nem poderia ser diferente, afinal, em uma cidadezinha interiorana com tão poucos habitantes (menos de dez milhares, com certeza) não há grandes agitações e percalços, principalmente no dia estipulado para o descanso.


No entanto aquela situação estava para mudar um pouco, e isto era até que esperado, afinal, o glorioso Trevo Verde, no ano anterior, conseguira pela primeira vez em sua cinqüentenária história chegar à primeira divisão do campeonato estadual. E agora, na última rodada, lutava desesperadamente para evitar o descenso ao escalão secundário, de onde possivelmente levaria mais cinqüenta anos pra ascender.

A comunidade prometera mobilização massiva em apoio ao xantorubro, com direito a discurso do prefeito em praça pública e presença dos atletas. Todos numa corrente rumo à vitória e aquela coisa toda...

O dia foi passando, a hora do jogo chegando, a população entrando em polvorosa e lotando o Trevosão, como era chamado o pequeno estádio do município, com capacidade para duas mil pessoas sentadas. A maioria das pessoas levou cadeiras de casa mesmo, e, à hora do embate, sem atrasos, deu-se início à partida.

A equipe da Associação dos Plantadores de Fumo de Coronel Ambrósio – APFCA – como equipe visitante adotou um sistema de jogo visando contra-ataques velozes, mantendo-se postada defensivamente, enquanto o Trevo Verde bombardeava o gol.

Acabou o primeiro tempo, e o segundo foi passando, passando, passando... mas o placar continuava zerado. E não fora por falta de oportunidades. O Ataliba Guerreiro, torcedor-símbolo e ex-atleta da equipe da casa, contabilizara 28 finalizações para o seu time e 12 para “eles”.

Mas o tempo, que é implacável, passou. Aos 38 minutos do segundo tempo o placar continuava do jeito que começara. O desespero começou a tomar conta nas arquibancadas e cadeiras. Badalhoca perdeu um daqueles gols imperdíveis e o atacante da Associação mandou uma bola na trave.

O pânico era evidente, quando, aos 43 minutos, Medeiros paulista adentra a área a tropicões e é erguido pela zagueiro oponente. Pênalti! Pênalti! Pênalti! A torcida delira, o goleiro e artilheiro Palheiras chora. O êxtase é geral.

– É agora ou nunca mais – brada Ataliba Guerreiro.

Os jogadores do Associação cercam o árbitro a gritos beligerantes, trocam empurrões e os 2 policiais presentes, aplicando todo o preparo recebido para dispersar este tipo de aglomeração, dão leves golpes de tonfa (ou cacetete, ou porrete, ou P.R.) nas costelas dos jogadores do APFCA que obviamente se acalmam um pouco.

A torcida do Trevo Verde está radiante, grita, se abraça, chora, esperneia. O técnico da equipe corre pela lateral do campo e grita pro Palheiras – goleiro e artilheiro:

- Ô Palheiras! Vai bater!
- Podexá professor

E corre até o meio de campo, onde para, levando a mão à coxa expressando um semblante realmente sôfrego:

- Professor!
- Quê foi, Palheiras?
- Senti a lesão!
- Aquela?
- Aquela, professor
- Filho da puta!

A lesão em questão curiosamente aparecia toda a vez em que havia um pênalti decisivo a ser cobrado.

- Quem bate? Quem bate?
- (...)
- Medeiros Paulista, bata você!
- Não dá, professor, tô no sacrifício já!
- Câimbra de novo?
- É!
- Medeiros Gaúcho. Você é o capitão! Corre pra bater!
- Não dá!
- Ora, ta lesionado também?
- Não. Eu sou ruim mesmo. O senhor sabe que eu só tô no time porque marco bem.
- Bate bem, você quer dizer! – gritou um adversário que estava já com as canelas inchadas.
- Cala a boca, fresco! – respondeu-lhe o Medeiros Gaúcho
- Ta certo! Ta certo – o treinador estava começando a ficar estressado
- Ô Badalhoca!
- (...)
- Badalhoca! – Gritou mais alto
- (...)
- Cadê aquele corno do Badalhoca
- Ta no boteco comemorando, professor! – gritou o Ataliba Guerreiro, da arquibancada
- Comemorando o que? Não ganhamos é nada ainda!
- Ta lá! Ele sempre ta lá quando não ta aqui. – retorquiu-lhe o Ataliba.
- Ta certo... ta certo...

A torcida começa a ficar impaciente e o árbitro começa a consultar o relógio.

- Quarenta e nove minutos! Quarenta e nove minutos!
- Calma, calma! Alguém há de bater essa merda desse pênalti
- Eu bato professor!
- Quem é você?
- Sou o Zezinho, irmão do Badalhoca!
- Você nem do time é! E tem menos de 14 anos!
- Mas eu bato bem na bola, professor!
- Não dá, moleque, vaza! Nem inscrito no campeonato você está!

E seguiu a conclamação aos guerreiros do time:

- Arioswaldo, vai lá! Você pega forte na bola
- Nem.
- Nem o que?
- Nem vou.
- Ta machucado?
- Não
- Ta nervoso?
- Não
- Ta com algum problema mais sério?
- Também não
- Então...?
- Não to afim. Aliás, vou pro boteco que o Badalhoca ta me esperando...

E foi.

- Mas que time de merda que eu fui arrumar pra treinar! Quem bate? Quem bate?
- Eu bato professor!
- Cala a boca Ataliba. Teu médico te proibiu de chegar perto de uma bola de futebol!
- Mas, professor, eu nunca errei pênalti na vida.
- Também nunca acertou. Por que nunca bateu. Te aquieta aí!
- Professor, eu quero bater.
- Cala a boca aleijado dos infernos! Vai bater pênalti na seleção para- olímpica de velhos bêbados!

Ataliba Guerreiro fechou a cara magoado. Não considerava-se merecedor destas palavras grosseiras. Esse treinadorzinho pensava que era quem? Não sabia quem havia sido o grande Ataliba Guerreiro? Também não ia mais oferecer sua ajuda.

- Quem bate? Quem bate?
- Cinqüenta e cinco minutos... vamos logo com isso! – gritou o juiz
- Calma, senhor, calma! – pedia o treinador
- Professor, eu posso bater?
- Você bate, Sergipe Sergipano?
- Bato!
- Então vai lá
- Vou!
- Vai!
- (...)
- (...)
- (...)
- Ta fazendo o que aí parado?
- Tô com medo, professor! Não vai dar...
- Para de chorar homem...
- Não dá... se eu errar nós caímos...
- Ai meu Deus... eu treino um time de frouxos e de ex-atletas... Quem bate? Quem bate?
- Chama o alemão Günter! – gritou um das cadeiras (de praia, claro)
- O alemão! Isso! Cadê o alemão?

Günter chamava-se, na verdade, Heinrich Günter. Era filho de filhos de alemães e motorista do time e também da prefeitura. Além de fazer bicos como taxista. Havia sido inscrito no campeonato pois a federação exigia que ao menos 20 atletas fossem inscritos. E Günter fora um dos 5 atletas não – profissionais “utilizados” pelo Trevo Verde para o certame...

- Cadê o alemão? – repetia, aos gritos, o técnico
- Ta na van – berrou um lá da arquibancada
- Manda trazer! Diz pra ele calçar as chuteiras e chutar essa merda de pênalti logo que eu quero receber o meu e ir embora pra capital!

E foram chamar o Günter

- Professor?
- Fala, Günter, mete uma camisa aí, um par de chuteiras e cobra logo esse pênalti!
- Eu calço 48, professor!
- Puta que o pariu! Quem tem uma chuteira número 48?

Silêncio

- E 47? 46?

Silêncio

- Eu calço 43. Serve? – perguntou ingenuamente o Cidimar Capixaba
- Vou voltar pra van. – limitou-se a dizer o Günter
- Sessenta e dois minutos – gritou o árbitro da partida
- Bate logo que eu quero ir pra casa – bradou o goleiro da Associação
- Eu já disse que posso bater... – falou o Ataliba Guerreiro, a esta altura já dento de campo.
- Te arranca daqui seu pinguço fedorento! Vai lá beber a tua cachaça com o Badalhoca e com o Arioswaldo!
- Quê que tem eu profezssssor?
- Ari! Que bom que você voltou! Bate o pênalti?
- Bato!
- Bate?
- Bato!
- Ta, toma aqui a bola.
- Qual delas?
- Ai meu Deus!! Quem bate? Quem bate?

Nesse momento há uma certa impaciência geral, tanto por parte da torcida, como por parte dos jogadores de ambas as equipes, e, lógico, do juiz de jogo que insurgia verbalmente xingos variados.

- Ta certo! Cadê o repórter da Rádio Popular?
- Estou aqui, professor! – Respondeu prontamente o dito cujo
- Você ta inscrito no campeonato, lembra? Faltava gente e você aceitou ser inscrito.
- Mas eu não achei que fosse jogar...
- Não achou mas vai. Ele pode bater, senhor juiz?
- Tenho de consultar o fiscal de jogo – respondeu-lhe
- Pois consulte, por obséquio, que eu quero resolver isso logo

O árbitro consultou o fiscal que assentiu com a cabeça.

- Veste essa camisa, calça um par de chuteira emprestado e cobra a penalidade.
- Posso cobrar enquanto eu narro? Sempre quis fazer isso
- Não!
- Então eu não bato o pênalti
- Ta, pode narrar – esta frase saiu quase como um suspiro da boca do pobre homem
- Então está bem, espere aí que vou ali calçar umas chuteiras que eu trouxe.
- Você trouxe chuteiras?
- Claro!
- Mas pra quê?
- Ué! Como assim pra quê? Pra cobrar a penalidade, professor!

O “professor” preferiu nem perguntar nada. Queria que aquele pênalti fosse convertido, o jogo acabasse, ele recebesse a pecúnia que lhe concernia e haveria de desaparecer daquela cidade e tentar arrumar um trabalho na capital.

Talvez um cargo como auxiliar em um clube maior ou treinador de alguma categoria de base. Currículo ele possuía: havia trabalhado com a garotada da Portuguesa de Desportos e conseguido resultados edificantes. Passara também pelas categorias de base de algumas equipes do interior do Rio de Janeiro. Até títulos conquistara.

Agora estava ali, pela primeira vez dirigindo uma equipe “profissional” e não precisava de um rebaixamento para laurear sua estréia.

Foi interrompido de seus pensamentos, pelo árbitro:

- Setenta e três minutos do segundo tempo! Vocês estão de palhaçada. Eu vou acabar este jogo é agora! – ameaçou o árbitro
- Acaba o jogo e não sai do estádio – respondeu à ameaça um torcedor.
- Calma lá minha gente, o repórter já vai cobrar isso ai de uma vez por todas. – Disse, por fim, o treinador.

Volta, devidamente fardado, o repórter. Sorrindo e já narrando sua entrada em campo:

- E adentra-se pelo campo o atleta de nome Carlos Camargo... tem a magnífica tarefa de efetuar o tento máximo da história do glorioso e inexorável Trevo Verde...
- Cala a boca filho de um corno com uma jumenta! Bate logo esse pênalti e vamos embora daqui!
- É! Vamos com isso que eu quero comer minha quentinha no ônibus! – Ganiu, soerguendo a voz, o goleiro do time visitante.

A torcida volta a acomodar-se. Reservas entraram nos lugares dos que desertaram rumo ao bar (no caso, o Badalhoca e o Arioswaldo, que, apesar de ter regressado ao campo, re-regressara ao boteco). Nos seus respectivos lugares: Nelsidor e Vítor.

Silêncio sepulcral. O batedor toma posição. Narrando, ainda.

- E Carlos Camargo prepara-se pra cobrança... espera o apito do árbitro.
- Priii!
- Apitou, correu Carlos Camargo pra bola...

Parou.
Silêncio.

Camargo vira-se para a comissão técnica (no caso, o treinador da equipe) e diz, tétrico:

- Professor... não dá! Acabei de lembrar que meu falecido pai trabalhou plantando fumo em Coronel Ambrósio. Inclusive foi membro-fundador da Associação. Não posso fazer isso com ele... sinto muito.
- Era só o que me faltava! Outro frouxo impotente! Pelo amor de Deus, quem bate essa penalidade?

Silêncio

- Nelsidor?
- Sim?
- Bate o pênalti
- Eu sou reserva do Trevo, professor... que qualificação terei eu pra comprometer-me em empreitada de tamanha relevância para a comunidade, no âmbito esportivo-social...
- Fecha a matraca! E volta a dar aula de comunicação, porque pra futebol você não serve!
- (...)
- Vítor!
- Senhor?
- Você é minha esperança. Você é um tetracampeão de Libertadores da América. Já foi campeão do mundo duas vezes. Tem bagagem e experiência... por favor, dê esta alegria à torcida do Trevo Verde.
- Ta certo, professor... só que tem um problema.
- Qual seja?
- Só bato quando pagarem os atrasados.
- Mas, Vítor. A direção pagará assim que o campeonato acabar, ou seja, daqui a, no máximo, 5 minutos!
- Antes quero ver a cor da grana. Se eu não receber, não tenho como comer, e sem comida o peão não vive.
- Mas você não tem guardado o dinheiro da época em que estava no auge?
- (...)
- Quem bate? Quem bate?
- Oitenta e dois minutos... – murmurou o juiz, quase chorando de raiva. – Eu tenho família também. Amanhã cedo trabalho numa escola. Sou professor de Educação Física...
- Ninguém quer saber o que você faz! – Gritou o Ataliba Guerreiro
- Quem bate? Quem bate?
- Palheiras, como ta a lesão?
- Ta dolorida!
- Mas dá pra bater?
- Não dá!
- Ai meu Jesus amado... quem vai bater?
- Eu disse que bato, você é quem não quer. – Vociferou o Ataliba Guerreiro
- Já não te mandei calar esse bico seu indigente, mendigo e fracassado?
- Ta certo, não vou mais tentar ajudar... mas eu sei quem poderia bater...
- Você, né? – Riu ironicamente o coach
- Fora eu.
- Quem?
- Não importa. Eu não era um mendigo, indigente, fracassado, bêbado e ladrão?
- Não te chamei de ladrão.
- Não?
- Não.
- Ah, certo... (visivelmente encabulado)
- Por favor, senhor Ataliba, quem poderia cobrar esta penalidade máxima a nosso favor?
- Você! – respondeu, cuspindo pipoca por entre os dentes, o nosso Guerreiro.
- Eu?
- É! Na falta de atleta eu soube que o senhor se inscreveu no campeonato
- Certo mas... mas... eu... eu não bato pênalti...

E, na falta de uma desculpa bem arranjada, e, sob olhar acusador da massa presente, percebeu que não haveria remédio. Teria de cobrar ele mesmo.

Acontece que ele nunca havia jogado futebol na vida, fora, claro, umas peladas esparsas quando jovem... no entanto era um aficionado pelo esporte. Acabara conseguindo um emprego na escolinha de um colégio em São Paulo assim que saíra da faculdade. E acabara conseguindo certa notoriedade “pagando uma de boleiro”.
Seria desmascarado. Certo. Mas também não podia ser tão difícil assim acertar uma bola longe do alcance do goleiro, e dentro daquela imensidão absurda que é uma trave de futebol de campo.
Amarrava as chuteiras lentamente, esperando que algum fenômeno ocorresse e esta tarefa fosse tirada de suas mãos – na verdade, pés – e transferida a outra sôfrega alma ali presente.

Calção vestido, camisa posta, meião erguido, chuteira amarrada. Como nada mais faltava, caminhou, pois, até a marca da cal.

Já havia tomado a distância e decidido que era canhoto – afinal ,escrevia com a esquerda, pois chutar bola, mesmo, nem lembrava com qual pé chutava, se é que chutava.

Concentrava-se no canto onde chutaria a bola (o meio), e já preparava uma “lesão” para o caso de errar.

O árbitro sorria um sorriso sádico e estava já em vias de apitar quando, como um último lampejo de esperança, o inefável Ataliba Guerreiro interrompe o ato:

- A quem interessar possa, o jogo entre o Palmeirense e o Campo das Pedras acabou empatado.
- Sim, e eu com isso? – berrou irritadíssimo o treinador-batedor-mártir do time xantorubro
- E daí que o empate lá, rebaixa o Palmeirense e salva o glorioso e esse outro timeco aí do rebaixamento

O capitão do Associação quis protestar quanto ao “timeco” mas preferiu ver onde que aquele circo ia dar.

E o Ataliba continuou.

- O Silveira Serrano já estava rebaixado. E com este empate o Palmeirense fica com o mesmo número de pontos dos dois times que estão jogando aqui... basta um empate pra livrar ambos do buraco.

O rosto do batedor alumia-se, apesar de ser já quase noite, e, dirigindo-se ao todo:

-Alguém aqui se importa com o Palmeirense?

Silêncio

- Alguém aqui ta filmando essa merda toda?

Silêncio

Olha reto para o repórter de campo, que lhe responde bruscamente:

- Ninguém ouve essa bosta mesmo.

E, finalmente, para o juiz da partida:

- Vamos embora daqui?
- Sim, e ligeiro.

Pega a bola em mãos, para o cronômetro, que já marcava quase 100 minutos de jogo, levanta o braço e...

- Priiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii

Aí foi só alegria. Até os jogadores do Associação participaram da festa, e, mais tarde, as comissões técnicas mais os jogadores de ambas as equipes (exceto o comandante da equipe do Trevo Verde, que saíra às pressas após receber seus atrasados) chegaram ao boteco, pra comemorar, e mais tarde juravam...

...que o Badalhoca ainda estava ali.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei do site.
estou divulgando para meus amigos.

parabéns.

Anônimo disse...

hahahahahaha

Ótimo.

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