"Sério? Bah, traidor!"

http://globoesporte.globo.com/ESP/Noticia/Futebol/0,,MUL273545-4274,00.html

Sempre que saem notícias desse naipe na mídia (início de temporada + Paulo Pelaipe = zilhões de notícias assim) encontro dois tipos de reação na torcida: o grupo radical, maioria absoluta, que mostra que estará disposto a tratar o jogador com hostilidade e desde já o trata dessa maneira; e outro grupo, mais ponderado, que diz que ele só está sendo profissional, e que isso aconteceria com qualquer um que tivesse a chance de receber uma bolada de dinheiro para jogar em outro clube.

Faço parte do primeiro grupo, e vou desenvolver o assunto:

- Sabemos que é assim que funciona, que pagando, eles vem e vão. Os jogadores de futebol de hoje são uma raça bem desprezível, fabricados e infectados pelo vírus do boleirismo e do bom-mocismo canalha, e com a personalidade de um poste. Eu não espero muita coisa deles fora de campo, mas eu adoraria ver, ao menos às vezes, algum jogador falando o que pensa e não o que o empresário mandou;

- Meu papel dentro desse universo paralelo chamado Futebol é o mais prosaico e simplório: sou um torcedor, e como torcedor eu considero um desaforo que um jogador que tenha recebido tanta coisa boa de uma torcida, que é querido por ela, simplesmente vire as costas e vá jogar no meu rival de morte do bairro ao lado;

- Pior ainda: que demonstre publicamente uma vontade de se tornar jogador do rival, com direito à declarações que, mesmo dotadas do mais puro cliché, se tornam perturbadoras ("O Grêmio é um grande clube. É mais uma opção para eu alcançar meus objetivos.");

- Mas e se eu fosse jogador e recebesse uma proposta similar? Bom, impossível saber responder, já que eu nunca ganhei 1 centavo pra jogar bola (inclusive devo ter gasto uma fortuna pagando para jogar. Multipliquem 2 pilas vezes 10 anos de aluguéis de quadras de futsal ou futebol 7 com os amigos). Sei que, caso Fábio Rochemback for pro Grêmio, eu serei um dos milhões que vai passar a enxergá-lo como um traidor (traidor nível médio, claro... nada que me faça jogar uma pedra na vidraça do carro dele);

- E sim, eu estou totalmente consciente da irracionalidade enorme da minha postura!

- De qualquer maneira, porco dio, eu sou um torcedor (do Inter, como vocês puderam perceber), e essa condição é a desculpa perfeita para agir como um viking pilhador em estado berserker contra outra pessoa ou coletivo. E nomá, o futebol é uma das poucas coisas em que não se encontra muito espaço para o ceticismo e a racionalidade, e é exatamente esse detalhe (que poderia ser visto como um defeito, pelos chatos) que faz com que milhões de pessoas ocupem seu tempo sofrendo, lendo, escrevendo, pensando, assistindo (e mais um sem-número de atividades) um troço que, na realidade, nenhum deles têm controle algum.

Santa burrice!

Basicamente eu penso em e sobre futebol boa parte do meu dia. Acompanho jornais, sites e, antes da minha tv quebrar, eu assistia todos os programas esportivos possíveis (ainda que com as mãos algemadas no pé da cama, para controlar meu ímpeto de jogar o televisor pela janela). No meio da "crônica esportiva", lotada de velhos arrogantes e saudosistas, uma das grandes imbecilidades propagadas aos quatro ventos é que a modernização dos clubes aumentará a média de público dos campeonatos. É uma moda que começou a pegar: seja elitizando os estádios, ou "reestruturando a gerência" dos clubes, a tal modernização teria o efeito nas médias de público como milho de pipoca numa panela quente - POP! - "voilá, temos uma média de 40 mil por jogo".

No duro, ouvir essas idiotices é o preço que pagamos por termos deixado que políticos, gerentes de marketing e empresários (o último tipo de gente que entende alguma coisa sobre torcidas) se infiltrassem e se apoderassem do meio (na verdade eles sempre estiveram ali, principalmente os políticos, mas a única função deles era contratar jogadores e assinar os cheques), e hoje ligamos a TV e tá lá algum semi-calvo de terno, que jamais deve ter pisado numa arquibancada de cimento sem morrer de nojinho, falando sobre como um torcedor quer ser tratado e etc.

Digo com toda certeza do mundo: mesmo que transformem os estádios brasileiros em Allianz Arenas e Bernabéus, a média de público não aumentará, jamais aumentaria. Quem não paga 20 pilas para ver um jogo não pagará 50 paus - a não ser que estejamos lidando com um imbecil de marca maior.

O exemplo adotado pelas "autoridades" nesse assunto, aqui no Império Tupiniquim, é a Premier League, a antiga Primeira Divisão da Inglaterra. Lá sim, as médias de público são assustadoras (e realmente são: ano passado o Manchester United colocou em média 75,826 por jogo), todos assistem seus astros estrangeiros ordeiramente sentados em poltroninhas mais confortáveis do que qualquer móvel que eu tenho aqui em casa - e pagando uma quantia imensa por isso. De fato, o troço funciona bem na Inglaterra, mas o negócio aqui é o seguinte: além do argumento batido e óbvio sobre o poder aquisitivo entre a classe média/baixa brasileira e a inglesa, a cultura futebolística de lá é muito diferente da de cá, e as nossas médias só aumentarão no dia em que mudar a própria mentalidade do torcedor.

Na Inglaterra a porcentagem de pessoas que não gostam de futebol é muito maior do que no Brasil ou Argentina. O negócio é assim: todas as pessoas no Brasil gostam de futebol, tirando alguns bunda-moles que consideram que o futebol não é "bom o bastante" para eles, e a imensa, esmagadora maioria dessas pessoas são torcedores passivos, cada um com seu time, as vezes assistindo um jogo pela tv, etc. É uma cultura de torcedor passivo que se prolongou e fortificou durante 100 anos, principalmente por conta do tamanho do território do país e da atual destruição das equipes menores e suas torcidas.

Na Inglaterra a coisa muda um pouco de figura. A porção inglesa que gosta de futebol é mais obsessiva justamente por ter uma espécie de "concorrência" de outros esportes populares e ser um grupo que não é tão majoritário assim. Como demonstra Nick Hornby em seu sensacional "Febre de Bola", a cultura de ir ao estádio é muito presente no torcedor inglês - e nesse mesmo livro ele se refere a um público de 20 mil pessoas como sendo "vergonhosos". As médias de público são altas na Inglaterra porque, bem, elas sempre foram altas. O futebol lá atrai multidões há mais de 130 anos e tudo que se refere às torcidas no futebol do Reino Unido assume ares épicos e selvagens, sejam nas inúmeras tragédias que resultaram em mortes
(pelas minhas contas, mais ou menos 300 pessoas já morreram em tumultos relacionados ao futebol inglês pós-guerra como em Heysel, Ibrox, Bolton, e o pior de todos: Hillsborough), nos meios de transportes antigamente utilizados para os jogos (o Football Special... oficialmente conhecido como "trem", mas que na realidade eram diversas caixas de aço puro sem assentos e divisórias com 400 pessoas dentro que rolavam sobre os trilhos), nos públicos absurdos (como os inacreditáveis 240,000 em Wembley na final da FA Cup de 1923, onde 60 mil pessoas ficaram do lado de fora; e os 183 mil torcedores socados em um estádio que hoje abriga 50 mil na Escócia em 1937), nos estádios (que até 1992 eram "construídos, na maioria dos casos, por volta de cem anos antes e que podiam acomodar entre 15 e 63 mil pessoas em pé") e em tudo que cerca a cultura de arquibancada no Reino Unido.

Digamos que um fã de futebol na Inglaterra é um alcoólatra da bola, um viciado. Já o brasileiro... bem, ele bebe socialmente com os amigos, e no meio destes sempre existe aquele que gasta 50 reais em Heinekein e vomita em cima de todos.

Claro que na última década, por conta das medidas de segurança tomadas por clubes e pelo Estado e com a elitização total do futebol de lá, esse espírito e essa cultura perderam muito da sua força e hoje se encontra com mais pujança nos clubes menores, de divisões inferiores, clubes de comunidades e bairros. E pondo na balança, a modernização do campeonato Inglês trouxe mais malefícios do que beneficios, já que os torcedores, aqueles que cantavam e criavam a famosa atmosfera dos terraces ingleses, foram chutados dos seus estádios e substituidos por consumidores e suas familias, que vão ao campo não porque o clube é parte necessária da vida deles e eles necessitam vê-lo, mas porque é um programa bacana para se fazer num sábado de tarde. Recentemente muitas pessoas de dentro do futebol inglês têm criticado os novos torcedores e a falta de atmosfera e empolgação nos estádios, entre eles o eterno técnico do Manchester, Alex Ferguson.

Imaginem então no Brasil, onde os estádios somente enchem nas finais e onde o torcedor comum é completamente passivo, pouco mobilizado e (desculpem o termo) amargo? Na maioria dos grandes clubes, podemos constatar que lotam seus estádios nas finais e grandes jogos, mas em uma rodada normal sempre se tem aqueles 15 mil (chutando alto, em PoA é um número um pouco superior... a comemorada média de público do campeonato brasileiro de 2007 foi de 17 mil pessoas) torcedores que, talvez por falta do que fazer ou talvez por um absoluto fanatismo, sempre vão nos jogos. Desses 15 mil, talvez metade deles não possam freqüentar um estádio cujo preço do ingresso dobraria de valor por conta da modernização/elitização, e dificilmente os torcedores de sofá deixarão de ser torcedores de sofá... resultado: podemos ter médias enormes nos primeiros jogos após os estádios serem reformados (sabe como é, pessoal é curioso, quer saber como ficou, etc), mas obviamente essas médias vão cair, cair e cair... até que um dia, e aqui eu peço licensa [pra cantar esta milonga e] dar uma de profeta, as direções dos clubes arranquem fora aquelas cadeiras tão pouco usadas, baixem o preço dos ingressos e tenham de volta aquela base leal de torcedores que a modernização acabara por expulsar.


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A partir de hoje me tornei colaborador do Puro Futebol, por sugerimento do Maurício e convite do George. A princípio vou me focar mais na arquibancada do que no gramado, dando mais ênfase a cultura em volta do futebol do que o jogo em si (ao menos pretendo, pretendo...).

Um abraço e até mais ver.
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