Carrinho na pedra e filosofia futebolístico-campesina*

Para além da Vacaria há uma certeza: quem é capaz de dar carrinho na pedra, é capaz de qualquer coisa.
E esta certeza vem coberta de razão.

- Olha lá, é o oitavo carrinho só no segundo tempo!
- Será que ele não percebeu que estamos jogando no paralelepípedo?
- Acho que ele não se machuca...
- A julgar pelas cicatrizes nas pernas, machuca...

Futebol-arte x Futebol-força
Drible x Marcação
Toque de bola x Chutão

Juramos a mesma bandeira, vivemos sob a mesma constituição.
Somos patrícios e jogamos, teoricamente, o mesmo jogo. Por que o futebol gaúcho é tão diferente do futebol no restante do Brasil?

Temos a vizinhança, que certamente ajuda. Quem já jogou uma pelada contra argentinos sabe que é matar ou morrer. (Já joguei e este texto não é psicografado).
Há a questão da temperatura – muito calor no verão, muito frio no inverno (mudanças assim gritantes obrigam os praticantes a valorizar a força e a condição física).
Há a cultura peleadora ocasionada – creio – pela variedade étnica no Rio Grande: a teimosia teutônica, a grosseria italiana, a força física africana, o sangre caliente espanhol e a raza rioplatense. Isso só pra citar os mais comuns.

Mas o principal, a meu ver, é que todo o gaúcho vê no futebol uma chance de representar o “continente”. O riograndense – cada um – sente-se o embaixador sulino quando fora do âmbito regional.
O brasileiro espera dele futebol-força e ele confirma as expectativas. Geralmente com certo exagero, é claro.

Esta necessidade de ser ultragrosso me fez lembrar de alguns dos antigos heróis do Rio Grande. Jogadores que levaram o pavilhão gaúcho para além-fronteiras. Atletas da mais alta estirpe, cujos grandiosos feitos nos deixam cheios de orgulho e admiração.

Recordo-me do grande Latorre, filho de pai uruguaio e mãe índia. Zagueiro central e cria de Santana do Livramento. Atuou por meia década num time local até ser descoberto por um olheiro – no tempo em que os clubes tinham olheiros – de tradicional time carioca.
Jogou lá por quase dois anos, contabilizando 3 pernas quebradas, 11 expulsões de campo, 1 agressão a gandula e 1 saída algemada do estádio
Acabou seus dias de jogador em famoso time bageense, intercalando expulsões por falta violenta, com expulsões por insulto à arbitragem.
Hoje atua como comentarista de futebol no bolicho do Guedes, em Livramento, mas no momento encontra-se suspenso pois ainda não pagou os 12 martelinhos que deve.

Tem também o inesquecível Rodrigues Ramos, que jogava ali pelo meio, na contenção (de corpos) e na distribuição (de faltas).
Verdadeiro herói em sua cidade natal – Dom Pedrito – este atleta teve destaque em tradicionais equipes riograndeses.
Em 1971, na véspera da final do certame gaúcho (a data é mera alegoria, posto que Rodrigues Ramos jamais disputou uma final de campeonato), este grandioso expoente do futebol-força teve sua carreira interrompida para sempre: teve as duas pernas quebradas por capangas logo após tentar uma abordagem mais incisiva em uma festa de debutantes.
A moçoila era a filha do Delegado da cidade e estava entre as convidadas. Sua festa de 15 anos ainda demoraria mais alguns anos...

E, por fim, não posso deixar de citar o lendário Schneider González.
Centroavante de origem teuto-rioplatense, medindo 1,97 e pesando 110 quilos, logo se destacou em laureada facção esportiva da Fronteira Oeste, na sua cidade natal e de onde jamais saiu.
Agregou durante os mais de 25 anos de carreira as funções de Delegado de Polícia e camisa nove. Durante 25 anos seu time foi campeão municipal. Durante 25 anos nenhum bandeirinha viu impedimento seu.
No último jogo da carreira – contrariado, mas acatando desesperado pedido da família para que parasse – lá pela casa dos 45 anos de idade, desabafou ao repórter que o entrevistara, após marcar o gol do vigésimo quinto título consecutivo, em impedimento:

- Solamente veinte y cinco años... muy lindo el Reich, pero que muy breve...

Este é o futebol gaúcho: sempre unindo todos os povos e destacando o que eles têm de melhor!

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* Por Maurício Kehrwald

1 comentários:

CÉLIO AQUINO disse...

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