Camisa 10 *

* Por Maurício Kehrwald

Sabem como é, aquela coisa de histórias em família.

Só que no caso do Paulo, já não era mais só história: havia tomado o statusde lenda. E, como de praxe nestes casos, ganhava proporções maiores a cada atualização ou novo relato.

Tudo corria dentro da normalidade, até que o Pedrinho, filho do Paulo,começou a crescer.

E a se interessar pelas histórias sobre o pai.


- Teu pai jogava muito, guri...

- Muito?

- Muito!

- Em qual posição ele jogava?

- Camisa 10, meia-atacante!

- Nossa...


Na escola, durante o recreio, resolveu passar adiante uma das histórias queo tio lhe contara. Encostou no Sardinha, seu colega de sala e doente por futebol:

- Ô, Sardinha, sabia que meu pai foi meia-atacante?

- E ele era bom?

- Muito! Camisa 10. Artilheiro...

- É? E em qual time ele jogou?

- Não sei!

- Como não sabe?

Não sabia. Esquecera de perguntar este detalhe para o tio.Decidiu descobrir direto na fonte.

- Paiê, em qual time tu jogavas?

- Vários times, filho! – respondeu enquanto largava o jornal

- Algum time bom?

- Claro, filho! Joguei no São Paulo, no Inter, e...

- No São Paulo?! No Inter?!

- Er... não, filho... no São Paulo de Rio Grande e no Inter de Santa Maria,que são times muito tradicionais e importantes do futebol gaúcho...

- Ah... mas ganhou algum campeonato?

- Alguns, filho... sendo que os mais importantes foram os dois títulos consecutivos do interior...

- Como assim, título do interior? Que campeonato é esse?

- Na verdade é como chamavam na época quem chegava logo atrás de Grêmio e Inter ao final do Campeonato Gaúcho...

- Ah, entendi...

- Entendeu, filhão?

- Entendi. Os teus maiores títulos foram dois terceiros lugares no Gauchão.

- (...)

- Pai?


Nessa hora, o Paulo, que apesar de paciente também tinha limites, estavalouco pra enfiar a mão no guri. Mas teve calma e prosseguiu.

- Eram outros tempos... tu nem eras nascido ainda, e... anh... bem...

Nessa hora a melhor coisa a se fazer é, claro, mudar de assunto. Mas não foi, mais claro ainda, o que o Paulo fez.

- ...eu também fui artilheiro do Carioca em 82, quando o Flamengo comprou o meu passe.

- Flamengo? Verdade, pai?

- Aham...

Afinal, se é pra mentir, que se minta bem!

- Oba! Vou contar isso pro Sardinha.

- Vai lá...

- Demais! Ele é fã de futebol e herdou um montão de revistas do pai dele.Com certeza tem o teu nome lá, em alguma delas...


Foi aí que o Paulo percebeu a bobagem que fizera. Seria desmascarado.Brutalmente desmascarado.Haveria de carregar aquele opróbrio como um pesadíssimo fardo, às costas,até o derradeiro dia de sua passagem por este plano. Precisava consertaraquilo, e ligeiro.

- Ei, filho, espera... tu precisas mesmo contar isso pro teu colega?

- Claro, pai... me orgulho de ti... mas... é verdade isso mesmo, né?

- Claro, claro... só avisa ao Tainha...

- Sardinha, pai.

- Isso. Diga ao Sardinha pra procurar o artilheiro daquele campeonato pelo meu apelido da época. Pelo meu nome ele não vai achar.

- Apelido?

- Isso, filhão! – suando muito, mas muito frio

- Tá, e qual é o apelido, pai? Espero que não seja complicado... eu ainda não conheço quase nada de futebol, sabe...

- Zico!


A mãe do Pedrinho, indignada, teve que trocar o filho de escola. Nosso meia-atacante camisa 10 dormiu no sofá por 5 semanas consecutivas e a criança, passados 10 anos – hoje com 18 – ainda não voltou a falar com o pai sem ser por monossílabos.Ah, sim, o tio do Paulinho é considerado persona non grata na casa.
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1 comentários:

Marcelo disse...

Muito boa história!

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