"(...) Não me recordo de mais nada que eu tenha desejado por duas décadas (o que mais pode com sensatez ser desejado por tanto tempo?), e tampouco recordo-me de algo que tenha desejado ainda garoto e já homem feito. Portanto, por favor sejam tolerantes com aqueles que descrevem um momento esportivo como o melhor de suas vidas. Não carecemos de imaginação, e tampouco levamos vidas tristes e áridas; apenas a vida real é mais pálida e mais chata, e contém menos potencial para o delírio inesperado."
Esse aí acima é Nick Hornby (vocês ainda me ver citá-lo muitas, muitas vezes) comentando o que ele chama de "o melhor momento da vida (dele)": o gol de Michael Thomas no último minuto de jogo contra o Liverpool, na última rodada do campeonato inglês de 1989 - que, em Anfield, tirou o título das mãos do time da casa e deu para o Arsenal, que amargava uma fila de 18 anos.
Desnecessário dizer que concordo integralmente com esse inglês. Caso fosse listar os melhores momentos da minha vida creio que muitos deles, pra não dizer a maioria, seriam lembranças de euforia desmedida relacionadas ao futebol, mais especificamente ao meu clube. Muitos desses momentos com uma carga de dramaticidade fora do comum (Dunga contra o Palmeiras em 1999), outros guiados por uma sensação de apoteose heróica e gloriosa (Gabiru contra o Barcelona), mas todos eles servindo para fechar as próprias cicatrizes que o futebol abriu.
Porque o torcedor de futebol tem cicatrizes na alma.
Melhor: o torcedor que sofre tem cicatrizes na alma. Ainda mais se for criança.
Foi na minha infância, principalmente entre os 9 e 14 anos, que se abriram as maiores rachaduras no meu peito. Verdadeiros canyons sangrentos. Era a época em que os colorados torciam pra torcida colorada, e não exatamente pro time, já que o Grêmio só ganhava, o Inter só perdia, e a torcida era o que mantinha por um fio a nossa moral e o nosso orgulho, lotando o Beira-Rio logo após 2 vitórias seguidas, naquela esperança cega. A minha relutância em virar a casaca, a minha irredutibilidade no coloradismo era tão absurda quanto os fracassos em campo da era Zachia/Amoretty. Mais absurdo ainda é a maneira com que, hoje, eu olho aqueles anos: uma ternura melancólica, quase que sentindo saudades.
E creio que pra muitos que viveram aquela época o sentimento é o mesmo. Torcedores de outros clubes que passaram grandes períodos de seca e sofrimento devem sentir a mesma coisa... um misto de terror ("que essa fase nunca mais volte") e nostalgia ("ah, mas naquele tempo as coisas eram diferentes").
Porém, pra sentir isso, é preciso ter fechado as cicatrizes. O gol de Thomas fechou as cicatrizes de Hornby, tanto que ele escreveu um livro inteiro sem vergonha alguma de falar dos fracassos homéricos do boring, boring Arsenal entre 1971 e 1989. Da mesma maneira, não sinto vergonha de falar da minha fase de puro sofrimento xiíta e desilusão que durou de 1992 até 2006 (com alguns gauchões ganhos pelo caminho - que eu prezo muito), dos dias ouvindo protestos no portão 8 pelo rádio após as derrotas, das inúmeras trocas de técnico, das desclassificações para times inexistentes, de Mazinho Loyola e Leandro Guerreiro, João Santos e Manoel e Pretto, da MSI e Zveiter, da sensação de que o universo conspirava contra o meu time, e que eu deveria me resignar e aceitar que nunca veria o Inter campeão fora do Rio Grande do Sul.
Os gols de Sóbis, Tinga e Fernandão foram sarando as feridas, e o que transformou todas essas lembranças outrora atormentadoras em memórias carinhosas de um tempo que não volta mais foi, claro, o gol do Gabirú. Naquele domingo, logo depois de voltar da Av. Goethe, creio que no fim da tarde - depois de ter gasto 50 reais em cerveja, ter desmaiado no meio da avenida e ter sido acordado com mais cerveja - eu sentei em frente ao computador e caí num choro emocionado, profundo e fiasquento, de puro regozijo, que durou horas e horas, enquanto ligava para o maior número de pessoas que eu conseguia me lembrar na hora.
Esses gols, esses momentos, devem ativar algo no sistema nervoso das pessoas e, num piscar de olhos, aquela lembrança que te tirava o sono por anos e anos acaba se tornando uma prova viva (nem tão viva, já que só existe na memória) e terna da tua fidelidade, do teu caráter, do teu ideal mais alto e palpável, que é torcer pelo teu time. Acordei na madrugada do dia seguinte todo queimado do sol, com a alma leve, olhos inchados e a sensação de que algo havia mudado. Que eu acabara de passar por um momento que talvez jamais eu passe novamente.
Esse é o fardo comum entre todos os fanáticos por futebol: somos completamente previsiveis até mesmo pra escolher os grandes momentos das nossas vidas. Tenho absoluta certeza que mais alguns milhões de pessoas por aí apontariam aquele segundo da manhã do dia 17 de dezembro de 2006 como o melhor da vida delas. Assim como gremistas e corinthianos (pra citar dois tipos de torcedores que eu não nutro muita simpatia) mais antigos possivelmente apontariam o(s) gol(s) de Renato em 1983 e o de Basilio em 1977.
Mas pouco importa a individualidade de cada um quando o que está em jogo é o fim do teu martírio e o início de uma nova era. Se for para ter momentos como aquele novamente, eu me prontifico a realizar grande parte do maior número de clichês possíveis.
E claro, mostrar pra todos as minhas cicatrizes fechadas, como prova da minha inquebrantável fidelidade.
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3 comentários:
Cada vez mais eu acho que sou anormal.
Eu acho aquele mundial tão inssosso.
Vibrei muito, mas muito mais mesmo, com aquela gol do Tinga na final contra o SPFC. A libertadores para mim teve sim o gosto de sangue, o gosto do sangue sendo estancado, as feridas sendo curadas. O mundial com o gol da Gabiru foi um jogo importante para um título importante, mas eu botaria ele no mesmo patamar do título gaúcho de 97, com aquele fabuloso fol go eterno Fabiano Cachaça.
Um dos melhores momentos da minha vida foi esse gol do Tinga, selando o jogo e dando a américa pro Inter, não foi "O" melhor, mas está entre o top5.
Pois é, che. Eu penso de maneira similar a tua, mesmo que falando isso eu entre em contradição.
Título por título, jogo por jogo, eu prezo muito mais a libertadores. Principalmente porque eu estava lá, tanto na final do Morumbi, quanto nos jogos do Inter no Beira-Rio. Além do mais, Libertadores era um sonho atávico que eu nutria, já que meu pai sofreu muito com as derrotas de 80 e de 89.
Mas o esquema do Gabiru foi o improvável. Aquele cara, um zé das couves, marcar aquele gol, único, contra aquele time, naquele torneio, daquela maneira.
E tem o agravante do Inter ter chego no teto do mundo. Naquele dia meio que juntou tudo (libertadores, mundial, sofrimento de décadas) e resultou nisso que eu escrevi.
Cada título tem importância relativa.
Ganhar do Barcelona, contra o Ronaldinho, contra tudo e todos, depois de uma vida de "só falo com quem é campeão do Mundo" tem MUITO, MUITO valor, sim.
No entanto eu entendo a posição do amigo acima: a Libertadores foi algo incrível. Foi a apoteóse de um clube que, após anos de "ingestões", consagrou sua inquestionável grandeza e gravou seu nome a ferro e fogo nos anais do Futebol Mundial.
O Interclubes da FIFA foi a cereja do bolo.
em tempo: belíssimo artigo do Froner. Serve para exemplificar os sentimentos de qualquer torcedor. Os gremistas, inclusive.
Aguante!
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