Mais um dia em que o futebol morreu

Um dos clássicos de maior rivalidade do mundo acontece entre Celtics e Rangers, os dois maiores times da Escócia. Além da rivalidade citadina (Glasgow), o clássico envolve a rivalidade religiosa entre católicos e protestantes (calvinistas), que desde o século passado parecem resolver suas diferenças dentro da cancha.

O mesmo não ocorreu na menor Irlanda do Norte. Acontece que na Irlanda do Norte, após a independência da Irlanda (começo do século XX), ficaram por lá os chamados "unionistas" (protestantes de origem inglesa que defendiam a manutenção da dependência política frente à Inglaterra) e também os católicos, estes republicanos pró-independência, que exigiam o fim do eterno mando de campo inglês.

Desta celeuma toda nasceu o IRA (Irish Republican Army) e suas dissidências, além do Sinn Féin, chamado de "braço político" IRA.

Mas assim como na "pacífica" Glasgow, a pequena Belfast tinha o seu Celtic, o "Celtic Belfast".
O Celtic escocês tinha sido fundado em 1887 e o co-irmão da Irlanda do Norte em 1891. Além de homônimo, não coincidentemente usava o mesmo uniforme do time católico de Glasgow, listras horizontais em verde e branco na camisa.

O Celtic Belfast fazia frente nos campeonatos da Irlanda do Norte. Foi campeão da Liga do país 19 vezes (a primeira em 1899 e a última em 47/48) e da Copa outras oito vezes.

O jogo era contra o Linfield FC , clube que existe até hoje e é o maior ganhador de títulos por lá. A seleção do Ulster também manda seus jogos no estádio do clube, o Windsor Park, atualmente.

Já nos anos 20, o Belfast Celtic havia se retirado das competições esportivas, em virtude das turbulências políticas, ficando sem jogar de 1920 até 1924.

Muitos anos depois, mais exatamente em 27 de dezembro de 1949, ocorria uma decisão da Liga, na cancha do Linfield.
O fundamentalismo religioso estava em campo também. 27 mil expectadores acompanhavam a partida, na maioria protestantes torcedores do Linfield. Era o jogo do ano. Ânimos exaltados. Atmosfera tensa.





Entra em cena agora o maior personagem e a maior vítima deste confronto: Jimmy Jones. Num choque casual com o jogador Bob Bryson, do Linfield, resultou em fratura do tornozelo de Bryson, aos 35 minutos. E, além disso, nesta época jogador contundido era jogador a menos, não existiam substituições. Chuva torrencial e mais o cinza normal da Irlanda do Norte, tornam a partida disputada na penumbra do começo do rigoroso inverno das ilhas.

Durante todo o segundo tempo, os auto-falantes anunciavam a contusão para todo o estádio do Linfield, inflamando a torcida. Os torcedores do Linfield exigiam a cabeça de Jones. Nesta altura o Linfield já contava com apenas 9 jogadores: havia outro contundido.

O jogo seguia equilibrado, e no meio do segundo tempo, após choque, um a menos de cada lado, saem contundidos. Neste momento já havia focos de brigas nas arquibancadas, que após alguns minutos foram contornados.

Gol do Belfast Celtic. A atmosfera ficou mais pesada e muitos dos torcedores, antevendo o pior, abandonaram o estádio.
Quatro minutos depois o Linfield empata. Os torcedores invadem o campo na comemoração, mas para agredir os jogadores do Belfast Celtic. Jones era o mais visado. A polícia, em pouco número e com certa má vontade, depois de algum tempo conseguiu liberar o campo para o recomeço da partida. Mas já era tarde.

Quando o juiz terminou a partida, novamente a torcida do Linfield invadiu o campo. Muitos para comemorar junto aos jogadores, mas vários para tentar agredir os jogadores do Celtic Belfast. Jones, isolado no ataque do Belfast Celtic, muito perto da linha de fundo ao apito final, onde estava parte da torcida do Linfield. O ódio contra ele era triplo: havia marcado mais de 20 gols na temporada, estava envolvido no incidente da fratura do zagueiro do Linfield e, talvez o pior, era considerado traidor, porque Jones era um protestante.

Tentava sair pela lateral do campo, quando foi arrastado pela turba adversária. Na platéia, os pais dele, que haviam ido ao jogo para assistir o filho artilheiro. Jones tentava ir ao encontro do seu time, mas foi impedido e arrastado pelas arquibancadas. Teve a cabeça perfurada. Os agressores, com ódio religioso, não esqueceram que ele era um artilheiro: pulavam sobre seus joelhos e tornozelos. Apenas um policial tentou intervir e também foi espancado.

No meio a tudo isso, o time do Belfast Celtic lutava contra a multidão, a socos, para tentar sair dali. Mas deram-se conta que Jones não estava entre eles, e jogadores e funcionários, foram resgatar o jogador.

Conseguiram, inclusive, levar ele ao hospital, mas o estrago já estava feito: a perna direita de Jones, após a cirurgia, ficou quase 4 centímetros menor que a esquerda.

No mesmo dia reuniram-se os diretores do Belfast Celtic para definir que medidas tomar, entretanto a federação imprimiu uma pena extremamente branda: decidiu que Windsor Park ficaria sem jogos por um mês, ou apenas dois jogos mandados fora de casa.

Diante disto, os dirigentes do Belfast Celtic enviaram uma carta aos dirigentes, desistindo do futebol e retirando o clube do futebol irlandês.





Aos 58 anos de idade, morria o Belfast Celtic.
Jimmy Jones tinha apenas 20 anos de idade.

Como não "ser" Celtic?

Editado - P.S: não foi intencional publicar este texto justamente hoje, mas ao ler o blog ADHD Controlado, do Germano, soube que 17 de março, é o dia dedicado a São Patrício, chamado de St. Patrick's Day pelos irlandeses, padroeiro católico da Irlanda.
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As brigas por lá continuaram acontecendo e recrudesceram. Só como exemplo, em 1972, uma passeata de católicos terminou em massacre: 13 mortos e dezenas de feridos, após a polícia inglesa resolver abrir fogo indiscriminadamente. O episódio foi retratado pelo filme “
Bloody Sunday”, de 2002, além da música da banda irlandesa U2. Trechos do filme abaixo:






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Fotos:
1. Escudo do Celtic Belfast
2. Elenco do Celtic Belfast em 1949 (http://www.groundtastic.co.uk/archives/belfast_celtic.htm)
3. Campo do Celtic Belfast (não foi onde ocorreu o jogo relatado acima), com capacidade para 50000 pessoas (hoje demolido e transformado em centro comercial).

2 comentários:

Germano Jaeschke Schneider disse...

Bah, muito interessante esta história. Confesso que desconhecia totalmente este Celtic do Ulster.

Anônimo disse...

Emocionante o relato. Pena branda? O Darzone continua jogando...

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