A Estética do Frio e o Futebol

Chega o frio ao Rio Grande do Sul, ainda que tímido se comparado aos meses de junho, julho e agosto, neste final de abril.

Mas já relembra os invernos rigorosos que acontecem por aqui. Finais de Gauchão, como a de hoje, nos meados dos anos 80 eram sempre abaixo de frio, nariz vermelho congelando, assim como os dedos, pôr-do-sol cedinho, e o sereno prenunciado a geada da noite, gelando a cabeça na arquibancada. No interior também era assim (algumas vezes ainda é, não raro), e até mais. Bergamotas vendidas em embalagens que eram uma tela laranja, onde eram depositadas as cascas,ingenuamente (se comparado a hoje) arremessadas dentro dos campos, em protestos contra bandeirinhas (as pessoas que mais sofriam e sofrem nos campos do interior gaúcho, dada a proximidade da tela e arquibancada). Arquibancada úmida e gelada. Nas localizadas ao sul do estádio, limo. Pés congelados.

As batalhas daqueles jogos pareciam ainda mais heróicas, em virtude deste fator, e ainda a infância.
Agora o Gauchão termina mais cedo, decorrência do calendário, mas hoje deu para dar uma relembrada daqueles campeonatos terminados em junho, julho ou agosto.

Mas um debate ocorre também em relação ao frio e o futebol: equipes oriundas de regiões mais frias tendem a ter um estilo de jogo mais ríspido, marcado, pegado, etc, em decorrência das temperaturas mais baixas. Seria uma defesa natural do jogador, que para se aquecer e manter-se assim, necessita correr mais, usar mais energia e por aí vai. Alguns discordam, outros concordam. Mas empiricamente podemos observar algum fundamento neste tipo de observação. E claro, há as exceções, em equipes de qualquer local.

E é indissociável, pelo menos para mim, final de Gauchão e o frio, ainda que sejam realizadas em meses de temperaturas mais amenas, ainda que exista o agora famoso aquecimento global, entre tantos outros fatores que alteram a percepção das finais de hoje e as de antigamente, além dos climáticos.

São detalhes, que só não são desprezíveis no sentido do futebol dentro das quatro linhas, porque por menor que seja a influência, ela aparece dentro do campo, como citado acima: mais marcação, mais "correria", e acabo concordando com este pensamento.
Mas o que acontece em torno de um jogo, final de campeonato, que ocorre no frio, também chama a atenção.
A torcida, vista de longe, aparece toda encasacada, predominando o preto na vestimenta, e com as cores do clube aparecendo entre as jaquetas abertas. Isto quando não chove, surgindo centenas de guarda-chuvas deixando as arquibancadas ainda mais escuras (isto no tempo em que guarda-chuva era apenas para proteger da chuva realmente, e podiam circular livremente nos estádios).

Enfim, um cenário diferente, goste do inverno ou não. E com a cara de Gauchão. De futebol gaúcho.
Mas a pergunta que fica é que se existe uma estética do futebol gaúcho que é baseada no (também) frio?

Pode-se afirmar que há uma maneira diferente de jogar e de enxergar o futebol em virtude do frio?
O assunto é tênue e difícil de ser mensurado.
E com a chegada do frio, das finais do Gauchão (este ano fugindo da "estética Gre-Nal"), lembrei da "A Estética do Frio" do escritor e músico Vitor Ramil, que não fala sobre futebol, mas consegue exprimir bem melhor, um pouco desta maneira diferente de ver as coisas, passando por esta questão que poderia ser meramente climática.

Mas, enfim, a verdade é que lembrei do inverno hoje, de Bagé, da Satolep do Ramil e hoje também minha, e destas coisas do sul.
Apreciem o texto abaixo, que vai bem além do futebol, vale a leitura.


"Outro Junho*
*De Vitor Ramil

Estou em outro junho. Estou no meu apartamento em Copacabana, Rio de Janeiro, de calção e chinelos, assistindo ao Jornal Nacional na TV. Assisto uma matéria sobre uma festa popular na Bahia. As imagens: um trio elétrico sobre um caminhão arrastando milhares de pessoas seminuas, pulando, suando, bebendo e cantando sob um céu furioso. Não consigo me imaginar atrás daquele trio elétrico. Não consigo me sentir próximo do espírito daquela festa, embora esteja igualmente seminú e com calor e a notícia seja apresentada num tom de absoluta normalidade, como se aquilo fizesse parte do meu dia-a-dia. Assisto a seguir uma matéria sobre a chegada do frio no sul. Vejo o Rio Grande do Sul. Vejo os campos cobertos pela geada na luz branca da manhã, vejo crianças escrevendo com o dedo nos vidros dos carros, vejo homens de pala andando de bicicleta, vejo águas congeladas, vejo gente esfregando as mãos, gente de nariz vermelho, vejo a espectativa de neve na serra, vejo o chimarrão fumegando. Seminu e com calor reconheço imediatamente aquele universo como meu. Mas as imagens são apresentadas num tom de anormalidade, de curiosidade, de quase incredulidade, como se estivessem chegando de outro país -fala-se em "clima europeu"-, o que faz com que eu me sinta estranhamente isolado, mais do que fisicamente distante. Tenho a incômoda sensação de estar no exílio e ver, ao mesmo tempo, o Rio Grande do Sul de perto, por dentro e além das imagens. Percebo então o quanto me sinto separado do Brasil.
Mais que isso, percebo o quanto o gaúcho se sente e o quanto realmente está separado o Brasil. Constato que o obscuro sentimento que nutrimos de não ser ou não querer ser brasileiros tem alcance muito maior que o de mera curiosidade histórica ou de motivos de piadas entre nós. E não preciso avançar até os casos isolados em que este é um assunto ideológico. Só o fato de um sentimento estar assim latente no espírito do gaúcho já é o suficiente para que se estabeleça separação e distância. Acreditar não ser ou não querer ser brasileiro e ao mesmo tempo saber que, mais do que fisicamente ligado ao Brasil, ele é irreversivelmente brasileiro – porque no fundo sabe que esta separação é impossível –, deixa o gaúcho num misto de frustração e impotência que o leva, inevitavelmente, a ter que administrar um sentimento de inferioridade. Uma simples manobra de compensação – uma manobra de sobrevivência – basta para que este sentimento de inferioridade transforme-se em sentimento de superioridade. E pronto. O gaúcho se sente superior ao brasileiro. Separação e distância.
O afastamento – ou inconsciente ou ideológico – do Rio Grande do Sul, torna-o o lugar do Brasil que mais facilmente pode ser definido em duas ou três idéias redutoras, enquanto suas sutilezas de estilo parecem insondáveis.
O gaúcho acaba tendo uma visão caricata de si próprio, a partir da visão superficial que o Brasil tem dele e que ele, como brasileiro, compartilha e assume. O deslocado gaúcho tende sempre a encarnar a personagem "gaúcho" quando se comunica com o Brasil. Do outro lado, os brasileiros tendem sempre a tratar o gaúcho como uma personagem. Numa visão geral, digamos a partir do centro do País, qualquer povo em qualquer região tem sempre suas peculiaridades transformadas em clichês, mas aparece antes de tudo como brasileiro. O gaúcho parece ter antes de tudo seus clichês, depois ser brasileiro. O Brasil o vê lá longe, isolado, e só pode enxergar o que nele é gritante, só as diferenças que saltam aos olhos. E o gaúcho faz que sim.
Assistindo ao Jornal Nacional me dei conta de que acima dos clichês comumente usados para nos definir, acima de toda e qualquer idéia redutora – que representam sempre pequenos recortes, fragmentos da nossa realidade –; que acima também das nossas sutilezas de estilo, estava a diferença fundamental entre o Sul e o resto do Brasil – como símbolo não redutor, primeiro e inquestionável, abrangendo todos os outros –: o frio. Vi que o Rio Grande do Sul simbolizava o frio no Brasil – a chegada do frio no Sul, mesmo com aquele ar "acredite se quiser", está anualmente na pauta da mídia nacional. E me dei conta de que o frio simbolizava o Rio Grande do Sul. Passei a ver o frio como metáfora amplamente definidora do gaúcho.
Esta idéia foi-se enchendo de sentido na medida em que, morando no Rio de Janeiro e viajando constantemente pelo Brasil, passei a sentir o clima tropical – a regularidade de um clima de mudanças tão discretas entre as estações; o calor; a presença constante e vital do sol, do mar e dos rios – como um grande pano de fundo onde se repetiam certas características que pareciam unificar o modo de ser dos brasileiros em sua diversidade. Deparei-me em muitos lugares – e lugares distantes entre si – com um mundo de valores, de hábitos, de gostos e anseios compartilhados que para mim não tinham a mesma significação. Mais objetivamente, vivenciei a expansividade, o excesso, o emocional, o gosto pelas ruas, pela diversão, pela alegria, pelo culto ao corpo, pela dança, pelo ritmo, pelo colorido, pela espontaneidade, pelo caos, pelo múltiplo, pelo variado, pelo eclético, etc. Vivenciei tudo isso e muito mais, sempre sob aquele amarelo forte, aquele quase tom laranja da luz do dia. Foi quando comecei a entender melhor o esforço dos românticos, a atitude dos modernistas, a postura dos tropicalistas. E foi quando não entendi e não aceitei a nossa distância "fria". Eu confirmara que a riqueza cultural do Brasil residia na sua diversidade e, claro, o Rio Grande do Sul já tinha nisso a sua contribuição. E depois, ao encontrar para cada característica comum dos "brasileiros" uma contrapartida na minha maneira de ser, nos meus hábitos de "homem que veio do frio", me perguntei como era possível que se visse nisso um sinal de incompatibilidade e não o sinal de que uma estreita colaboração entre os dois "estilos" abriria uma perspectiva humana e criativa infinitamente rica de possibilidades.
Até quando essa dieta de brasilidade que nós gaúchos nos impomos? Aonde isso nos levará? E até quando essa dieta gaúcha que impomos ao Brasil, reduzindo-nos numa estreita e auto-indulgente visão caricata de nós mesmos e do nosso mundo? Por que uma comunicação natural e direta com o resto do país deve ser tão complicada e escassa? Por que não soar "normal" se somos brasileiros, se estamos fisicamente ligados ao Brasil, se fazemos parte da cultura nacional? Será que estamos fadados a que toda e qualquer expressão nossa soe sempre "folclórica"? Não iremos jamais compartilhar, contribuir regularmente, acrescentar de forma natural e efetiva com o país?
(...)



Vitor Ramil


Trecho de ensaio publicado no livro Nós, os gaúchos, Editora da UFRGS, 1992, retirado do site http://minerva.ufpel.edu.br/~ramil/vitor/estfrio.htm .
Recomendo a leitura completa.


Off: recomendo também, pra quem não conhece, conhecer a obra musical de Vitor Ramil. Excelente, tanto as letras como as músicas.

Foto: arquivo do Jornal Minuano (Bagé-RS). Esta foto é na Praça da Estação, em Bagé, e não é "coincidentemente", pois o nome é em virtude da antiga estação ferroviária que existia por lá, e atualmente é a sede da Prefeitura Municipal (ao fundo da foto).


9 comentários:

Maurício Alejándro Kehrwald disse...

equipes oriundas de regiões mais frias tendem a ter um estilo de jogo mais ríspido, marcado, pegado, etc, em decorrência das temperaturas mais baixas. Seria uma defesa natural do jogador, que para se aquecer e manter-se assim, necessita correr mais, usar mais energia e por aí vai. Alguns discordam, outros concordam.

EU concordo, inclusive meu próximo post aqui fala - também - sobre isso!
Welcome back, George!

Maurício Alejándro Kehrwald disse...

Passei a desprezar o Vítor Ramil desde que li este texto. Ele faz um comentário cretino demais pra que eu possa, como gaúcho, tolerar. No mais, concordo contigo: a estética do futebol gaúcho é sim, a estética do frio: "encarangado" na arquibancada ou sob ocobertor comendo pinhão com quentão em casa.

Anônimo disse...

Eu discordo dele em certo ponto.
Ele esquece no texto das coisas contra o RS, tanto na música, cultura, etc.
Eu tenho minha teoria sobre isto, o motivo desta "contrariedade" em relação às coisas do Rio Grande.
Não caberia explicar aqui.
Mas uma coisa é eu escrever num blog, outra é ele, com relativo sucesso no Brasil, escrever. Ainda assim, pode ser simplesmente que ele não veja as coisas como eu vejo.

Mas mesmo que ele, Ramil, concordasse com que eu penso, para ele seria difícil escrever na "cara". O texto dele tem um alcance e repercursão bem maior (nem se compara) que o meu, por exemplo.

Há mais coisas "sob o tapete", nesta relação RS- Brasil, mas são difíceis de serem tocadas.

Admiro o texto dele principalmente por explicar esta visão gaúcha sobre o Brasil, mesmo que depois discorde de outros pontos.

Vou achar um link do escritor Janer Cristaldo, que não escreve exatamente sobre isto, mas coloca o dedo na ferida de maneira mais contundente.

Entratanto saliento: é difícil qualquer pessoa tratar deste tema de maneira mais séria. Acho que o Ramil conseguiu isto, apesar de algumas discordâncias.

Anônimo disse...

Maurício, dá uma olhada, não sei se já conheces:
http://br.geocities.com/sitecristaldo/artigostres.htm

Não é exatamente o assunto daqui, mas mostra outras coisas.

Anônimo disse...

Gostei deste blog! Parabens! Convido toda a gente a visitar e, se possível, a divulgar o meu:
WWW.ROLA-BOLA.BLOGSPOT.COM (blog com entrevistas, estatísticas, dados históricos)
Todas as cores são bem-vindas, espero que se torne um leitor assíduo!
Um abraço

Maurício Alejándro Kehrwald disse...

George: baita artigo do Janer... o último parágrafo sintetiza tudo!

ingo. disse...

Hoje, dia 29 de maio, faz um mês que não postas nada.

Embora eu nunca tenha comentado no blog, eu sou um leitor assíduo, e por "menor" que seja teu blog, o que escreves sempre me agradou bastante.

Um abraço, e espero que voltes.

George disse...

Valeu, Ingo!

Agradeço a leitura.

Espero postar algo até este final de semana. A falta de textos é muito em função de uma monografia de conclusão de curso que estou fazendo (e tenho que escrever bastante por lá também), então está um pouco mais difícil.

Mas vou dar um pouco mais de atenção por aqui, um mês sem postar é demais mesmo.

Grande abraço!

Anônimo disse...

Hola,
Acá es motivo de mucha alegria saber que equipo de Gremio es adiversario de Boca juniors.
la verdad acá estamos muy contente en saber que no es Equipo de Santos o adiversario de Boca juniors.
nosotro no queria Santos como adiversario , por ser una equipo muy fuorte e bien mejor que Gremio.
Tiendo equipo de Gremio como adiversario, Boca tien la gran capacidad de triunfo en libertadores.
La verdad fútbol de brazil es decadiente, fútbol Gaucho es muy fraco y inferior la fútbol Argentino.
Perdón la sinceridad y portuñol
Muchas gracias,
esteban
Córdoba

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