Puro Futebol das antigas - Gauchão dos '70 (Ba-Gua)

Continuando a excelente série sobre o futebol do interior e seus clássicos, nesta terça-feira o jornal Zero Hora publica um apanhado da história do clássico bageense, o Ba-Gua, disputado entre Bagé e Guarany, desde 1921. Mais uma vez o aviso de que a matéria é relativamente longa (se comparada a uma postagem corriqueira de blog), mas indico e insisto na leitura completa da matéria. E novamente, os parabéns ao jornal Zero Hora pela bela e importante iniciativa.

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O bochicho da rivalidade Ba-Gua pega fogo
As histórias do clássico Ba-Gua encerram a série de reportagens do Gauchão de antigamente
JONES LOPES DA SILVA (Jornal Zero Hora)


Na praça central de Bagé, zona de antigos entreveros entre maragatos e chimangos, federalistas e republicanos, e que hoje vive sob a vigilância da estátua do senador Gaspar Silveira Martins, o Sansão do Império, ali o torcedor do Guarany escarnece à vontade: - Vamos montar um time B para botar contra o Bagé na Segundona. Orgulho ferido, o gaudério do Bagé não aceita o desaforo: - Guarany é ioiô, hoje está por cima, amanhã apeia e fica por baixo.

O bochicho da rivalidade Ba-Gua pega fogo. Os qüeras do Guarany abrem o sorriso porque o time campeão da Série B do ano passado hoje é um dos caçulas do Gauchão que se iniciou sábado. Nem por isso os guapos do Bagé se dão por vencidos, apesar de penarem na Segundona desde 1986 [nota do blog: na verdade a última vez que o Bagé esteve na Série A do Gauchão foi em 1994], e da falta de grupo de jogadores e de um presidente eleito.

Tem hora marcada o bate-boca nos botecos do calçadão e da Praça da Bandeira. Por volta das 10h, antigos craques como Bataclã, Sérgio Cabral, Badico, Osvaldo e ex-dirigentes como Luis Carlos Deibler, do Guarany, circulam pelo centro. Somam-se a eles Ênio Chaves, Max Ravasa e Saulzinho, os que jogaram nos dois lados da história. São paparicados por torcedores que lustram os bancos dos quiosques e tomam posições à porta da barbearia e dos bolichos.

- Interditaram o campo do Bagé para reforma agrária - debocham os índios do Guarany.

Do outro lado da Avenida Sete de Setembro costuma passar Carlinhos Catador, 40 anos. Paramentado de amarelo e preto, ele empurra o carrinho recolhendo papelão para manter 20 crianças do bairro Santa Cecília no bloco burlesco Aqui e Agora e na torcida do Bagé. É o símbolo do clube.


- La pucha! Bageense é quem nasce na cidade - avisa. - Eu sou jalde-negro!

Ao meio-dia, o comércio fecha, a cidade se encoruja e a flauta entra em recesso. Mas, às 14h, após a sesta, as lojas reabrem, e os fanáticos voltam aos seus postos sob sol inclemente. Peões e pecuaristas de bota, bombacha e chapéu de barbicacho ignoram os 34ºC com sensação de 40ºC e parecem os únicos seres do município de 120 mil habitantes na Fronteira Oeste sem opinião sobre o Ba-Gua.

Não é o caso de Gladir Guterres, de 76 anos. De gravata e boné, ele se destriba bom humor trabalhando na portaria de um hotel. Seus comentários consistem em informar sobre o tempo, os segredos da cidade e o seu Grêmio Bagé:

- É o time do povão, sim.

Essa polêmica corre nas coxilhas da Campanha. Depois da escassez da água, que só pinga após as 14h, por falta de solução à carência de chuva, a altercação entre "alvirrubros" e "jalde-negros" é saber qual é a maior torcida. O Grêmio Esportivo Bagé nasceu em 1920 da fusão do 14 de Julho e do Rio Branco, de bairros populares. Já o Guarany é fruto da boêmia que rolava na Praça da Matriz. Entre uma serenata e outra, Carlos Garrastazu, recém-chegado de Montevidéu, fundou o clube, mais tarde associado aos militares.

Quem conta é o jornalista e historiador de 84 anos Mário Nogueira Lopes (foto ao lado), nome das cabines de imprensa do Estádio Antônio Magalhães Rossel, o Estrela D'Alva, que o Guarany vai inaugurar no centenário, no próximo 19 de abril. De tanto rebuliço nos clássicos desde os anos 40, Lopes se convenceu de um causo certo:

- Nunca vi Ba-Gua decidido só dentro de campo!

A história do goleiro argentino Héctor Lugano é a mais corrente. Era ele a fortaleza do Guarany num clássico de 1953, até o zagueiro bageense João Nascimento cobrar uma falta do seu campo de defesa. Ou seja, antes do meio do campo. A bola voou por todo o gramado do Pedra Moura. E entrou. Uma parte do estádio riu, a outra, praguejou, e o Bagé venceu por 1 a 0. O lance mereceu a gaiata denominação de "Gol dos 70 metros".

Sem mencionar nomes e datas, Lopes discorre sobre um Ba-Gua dos anos 60. Um conhecido árbitro da cidade tinha a missão de favorecer um lado, mas se viu obrigado a assinalar pênalti contra seus próprios interesses. O goleiro não defendeu a cobrança, e o árbitro mandou bater de novo. Outra vez saiu o gol e o juiz exigiu uma terceira batida, porque, afinal, o goleiro tinha que defender uma para garantir o dinheiro. Mas o frangueiro tomou outro. Indignado, o árbitro chamou o goleiro a um canto e o inquiriu:

- Quem é o vendido aqui, sou eu ou és tu?


A incrível história do ba-gua dos cem tiros

Corria o Ba-Gua de 1964 e a torcida do Guarani estava impaciente com o árbitro Mário Severo. Quando ele expulsou o craque alvirrubro Storniollo, a irritação cresceu e os xingamentos já não foram suficientes. Mal acabou o clássico em 1 a 1 no Estádio Estrela D'Alva, do Guarany, um gaiato invadiu o gramado e agrediu o árbitro. Rapidinho, os exaltados cataram pedras e garrafas e tentaram fazer seu Severo de alvo.

O alambrado do lado da torcida do Guarany deu sinais de ceder, e a Brigada tomou posto. Não adiantou. Sem solução, os brigadianos atiraram para cima. Esperavam assustar a horda. Que nada. O pobre do árbitro continuava engalfinhado com o torcedor e os tiros correndo solto.

O tiroteio foi tamanho que os jornais locais batizaram o episódio de Ba-Gua dos 100 tiros. Por um bom tempo, a grande polêmica na cidade era saber se o número dos estampidos foi mais ou menos do que o calculado pelos jornais.

Assim se formou a história do Ba-Gua, desde o primeiro clássico em 1921. A lista dos jogos inacabados, por exemplo, é um dos mais ricos capítulos do futebol gaúcho. No 13 de maio de 1990, a torcida do Bagé, sentindo o time em desvantagem técnica em campo, usou o maroto artifício de jogar a bola para fora do Estádio Estrela D'Alva. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis bolas sumiram, até o árbitro se dar conta de que havia somente uma para o clássico seguir adiante. Então, aos 10 minutos do segundo tempo, aconteceu o que a torcida do Guarany temia: desapareceu a última bola. Procuraram por todos os cantos. E o jogo acabou, 0 a 0.

Alegam os qüeras do Bagé que o episódio foi vingança por fatos ocorridos em um clássico anterior, disputado no Estádio Pedra Moura, quando os viventes do Guarany furaram quase todas as bolas de jogo.

A lista dos inacabados começa em 1931. O Bagé vencia por 2 a 0 e o Guarany saiu de campo. Dez anos depois foi o Bagé que deixou o gramado no segundo tempo por não concordar com a expulsão de Tupã.

Houve mais três clássicos nos anos 30 que mal chegaram à metade do segundo tempo por causa de briga generalizada.

- Só não havia batalha quando torcedores contrários reconheciam do outro lado seus amigos. Então, descia uma aura de civilização e eles se apartavam - conta o jornalista Mário Nogueira Lopes.


Craque dos anos 60, Saul Santos Silva, o Saulzinho (foto ao lado), de passagem por Bagé, Guarany e Vasco, passou a carreira recebendo chutões dos zagueiros e ainda assim marcou 95 gols no clássico, a maior parte nas goleiras do Estádio Pedra Moura. Não raro presenciou cenas tão hilariantes como patéticas: a torcida que ocupava a fileira de cadeiras de palha, bem à beira do gramado, senhores engravatados e senhoras com leques de abano, perdia a cabeça e partia com a cadeira para cima dos jogadores ou do árbitro. Quando o jogo era retomado, a palha destroçada tinha de ser varrida do gramado.

Houve outros episódios de brigas de jogadores e batalha campal em 1956, e em 1969, o clássico não foi adiante por falta de garantia ao árbitro João Carlos Ferrari, atingido por uma pedrada.

Mas ninguém expulsou mais jogadores nos gramados de Bagé do que o valente Tristão Garcia, um árbitro de Pelotas. Num Ba-Gua de agosto de 1950, ele colocou dois para rua, um de cada time. Como o jogo perdurou na categoria da selvageria, e como a torcida surpreendentemente não ameaçava represálias, ele se manteve na missão de pôr ordem na casa. Quando já havia três do Bagé e quatro do Guarany fora de ação, Garcia ouviu o rancor das arquibancadas e se aquietou.

Nunca expulsaram tanto num Ba-Gua. Perto disso, só o clássico de maio de 2003 [relatado anteriormente aqui no blog], com seis expulsões. Ou o dia em que os reservas dos dois times ameaçaram brigar. Aconteceu em 1997. Os dois times em campo, assistindo a tudo surpresos, e os reservas querendo se engalfinhar. Acabaram expulsos.



Vinganças, intrigas e "corpo mole"

Já garantido no octogonal final do Gauchão de 1987, o Guarany enfrentou o 14 de Julho apenas para cumprir a tabela. Se empatasse, também classificaria o Bagé. A semana do clássico chegou recheada de intrigas, com os jogadores do Guarany acusados de estar dispostos a amolecer a partida. Para surpresa de todos, o Guarany fez 1 a 0 e o time se mantinha no ataque. De repente, o 14 de Julho empatou, fez o segundo e o terceiro: 3 a 1. O Bagé quedou-se desclassificado.

Na primeira partida do ano seguinte, o Bagé goleou o Guarany por 4 a 0 no gramado novo do estádio Estrela D'Alva, o Antônio Magalhães Rossel. Mas ainda não se considerou vingado. Pela Copa Cidade de Porto Alegre, em 1991, valendo passagem para o Gauchão, o Guarany disputava vaga direta com o São Paulo, de Rio Grande. Mas deu azar. Dependia do Bagé para vencer o São Paulo no Pedra Moura, na última rodada. Os jalde-negros jogaram com um misto. O time não resistiu ao São Paulo, perdeu por 1 a 0 e foi eliminado.

A desconfiança sempre rondou a cidade de Bagé. Jogador de um time não podia ser visto com um da outra equipe porque logo corria pela Sete de Setembro o boato de que um deles estava vendido. Havia guerra de apedidos nos jornais.

- Bastava encontrar o adversário na esquina para plantar a notícia de complô e a expressão "está vendido" - conta Saulzinho.

Até 1977, calcula Saulzinho, os estádios costumavam colocar mais de 5 mil torcedores por jogo. Nos anos 50, 60 e 70 eram tempos sustentados pela força da pecuária, com dinheiro mais fácil. Não foi à toa que os grandes times da região, como o Guarany de Saul, Solis Rodrigues, Tupãzinho, Ivo Medeiros, Max e Ênio Chaves surgiram nessa época.

Mas foi nos anos 20 que o futebol local explodiu. Assim, o Guarany sagrou-se campeão Gaúcho em 1920, bicampeão em 1938 e vice em 1926, 1929 e 1958. Campeão em 1925, o Bagé ainda foi vice em 1927, 1928, 1940, 1944 e 1957. Mas foi o Bagé quem teve o perfil de clube revelador. Foi no Pedra Moura que surgiram Tupã, Raul Calvet, Sérgio Cabral e o próprio Saulzinho. Todos eles acabaram depois no Guarany.

- Apesar da rivalidade, a passagem de um clube para outro não era tão dramática - lembra Calvet (foto ao lado), que começou como atacante no Bagé e se tornou meio-campista e zagueiro no Guarany, antes de chegar ao Grêmio e ao Santos de Pelé.









( jones.silva@zerohora.com.br )

Que chute!
Em clássico de 1953, zagueiro do Bagé bateu falta de seu campo e marcou o gol da vitória sobre o Guarany.
O lance foi denominado Gol dos 70 metros


Galego
Um dos raros momentos de congraçamento Ba-Gua foi patrocinado pelo técnico Paulo de Souza Lobo, o Galego (foto), o homem que comandou o Bagé por 311 jogos durante os anos 70. Pois Galego formou uma seleção da cidade para jogar no Uruguai. Tomaram um ônibus até Porto Alegre e um avião até Montevidéu. O problema é que chovia dia e noite. Chovia tanto que não houve a mínima chance de sair jogo e a delegação refez as malas. Partiu de ônibus até Bagé sem entrar em campo.
A seleção de Galego só viajou.










Matéria publicada no Jornal Zero Hora (Porto Alegre-RS) no dia 23/01/2007.
Autor: Jones Lopes da Silva

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Fotos: Jornal Zero Hora

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